![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgoHZsORtvVBcvSWSCVfMuV9VFcrNSdBbtBUqkcBKjZ16VJ0cK_9Atxp0Ln8p3T4iCeZ2JhWB0688x7sPnvW6eKlgDgc33xiCyxye0J80jkr_T2wklFK3rlV-msQEwKhbv4rPSoJI9g6G5f/s400/Dom+Casmurro+-++capa.jpg)
O leitor de Machado imaginará que não é fácil escrever sobre o mais consagrado de nossos escritores: sua obra abrange mais de cinquenta anos de sua vida e se estende por vários gêneros como o conto, a crônica, a poesia, o teatro, a crítica, o romance e tem sido alvo de numerosa fortuna crítica, ao longo de mais de cem anos. Entre suas obras, Dom Casmurro, vem concentrando o interesse maior dos leitores e da crítica.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg5d75kb2Zy3z9mquoGlNkW0rjYacHkqcxEf6s5vZhn3vp6Iqaai9WuYZuIJEDArvb0J3Gl-gbcT5IzR1uzMfuHhFSLELhOKTsAeygRny1mlIFVbGDiDIXzmaDn1O8nfNmTcrXQiGQGfsW5/s400/0850515033.jpg)
Neste romance, Dom Casmurro, nome com que fica conhecido na idade madura o advogado Bento Santiago, tenta “atar as duas pontas da vida” através da memória, relembrando seu amor, desde menino por Capitu, a luta bem-sucedida para impedir o cumprimento da promessa de sua mãe em fazê-lo padre, sua vida conjugal com Capitu, o nascimento do filho e, com a morte do amigo Escobar, o nascimento das dúvidas... Embora durante muito tempo, a crítica tenha lido Dom Casmurro como o romance do adultério, permitimo-nos lê-lo, através de indícios disseminados no próprio discurso encapuzado do narrador, como o romance do ciúme. Mais do que a história do possível adultério de Capitu, o livro conta o drama de Bentinho, obsessivamente centrado nas sensações do ciúme, tal como Otelo de Shakespeare, tantas vezes mencionado pelo personagem-narrador.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiEMe3-U-Qw5l_Yn7WqH4LD_Ylikav4jiOI-_tJL5JfqKp_zJ2SZcq0LkdrZKmHcg0gq1esBbyBXDx9ugXB0cDDC_02POPWTHYanXYbHkFXIpGTzo7SPJYkz4gB2hzmVass0SB5bEt1kUr5/s400/85-16-03985-4.jpg)
Como seus outros romances, Dom Casmurro tem por cenário a cidade do Rio. As referências a personagens, acontecimentos e costumes que caracterizam o Rio do Segundo Império são abundantes: o pregão do vendedor de cocadas, as relações familiares de feitio patriarcal, o Imperador a caminho da Escola de Medicina no coche imperial, os panegíricos, as francesas da Rua do Ouvidor, a Tijuca e a Glória, o namoro a cavalo, o canapé, os comentários à guerra da Crimeia, a contradança, o gabinete do Rio Branco, o discurso no enterro.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgvWMI9vefpZDctvci2vRopwto6NrXXZiDk8P4BcJxX6t2u35B_vgCvhbYI9pMZFH67TvbEPJgc7nHJh6_ry3r2VtGSPgedFJ9_9TIzMv_RiGcBin5P6m739zFkRCxGs1xh_KOw-_acsdWb/s400/dom_casmurro.jpg)
Machado revela, porém, uma cidade e um tempo filtrados por seu pessimismo mitigado e relativizados pelo humor e pela ironia. Em sua vida sedentária, as viagens de verdade foram substituídas pelas viagens à cidade das letras ou, como ele mesmo disse, em voz de Brás Cubas, pela viagem “à roda da vida”.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhSijnp2myaEfQ9RhG9SPD7tms4u0kQaqrT7iVCsrXFbxlcg3W7B1qizMC5yB3jlSYx69pVt7HZ1qco5ZIQ_7LxV2ucMPVH2AFVhe_3e72XinhnHVQYYcVCyPU3oCkMvScuMfewgwQi5yv1/s400/dom_casmurro+2.jpg)
A retórica do personagem-narrador de Dom Casmurro é construída com vários artifícios: do discurso forense, às digressões, à metáfora, às alusões bíblicas, à ironia, ele vai tecendo sedutora e persuasiva teia de aprisionamento do leitor. A estrutura do discurso de Casmurro, com raciocínio de advogado, quer convencer através do argumento da verossimilhança: não podendo provar que Capitu cometeu adultério trata de mostrar que é verossímil a hipótese de que o tenha cometido. As digressões disseminadas nas suas “memórias” – a alegoria da ópera, a visita do Imperador, o Panegírico de Santa Mônica, Otelo –, trazem, também uma “lição” que complementa, reafirma ou metamorforiza a ideia central do narrador: a contradição e a fragilidade do ser humano, sua tendência para o mal. Outro modo de operar do discurso de Dom Casmurro é o do uso de metáforas tão marcantes que uma delas cristalizou-se no imaginário brasileiro, a expressão “olhos de ressaca”, para Capitu, com a mesma força da expressão “virgem dos lábios de mel”, para Iracema, de José de Alencar.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEis-dBbTfeJRjAMS8gotMPHyctHuI-L2F-HQ1shf1LSIX0LPrCEMYWm2KHdF6uiEnQZcwTr2TG5I_8PE62m7hptZZYR3-VtJryVcB1aiQK2PN3g5cg4EJTZiUB6qwlqPdhD1sPYil_l22Vb/s400/dom-casmurro.jpg)
A contradição da elite brasileira do final do século, que se acreditava civilizada e civilizadora, vivendo a belle époque dos trópicos, mas que foi responsável pelo brutal massacre de Canudos, retrata-se genialmente nesse Casmurro culto, inteligente e de bom-gosto, conhecedor da melhor literatura europeia, mas capaz do ato bárbaro de condenar sua mulher sem direito à defesa, e de castigá-la com o desterro. Ao saber da morte do jovem Ezequiel, lembremos a suprema ironia de Machado, Dom Casmurro jantou bem e foi ao teatro.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhBT49Qz3dAosgxHlfuM-Vqf_PJstTXHus5GngJOohVrFApPDSHU09TDqlT_BSTXBo0yw0MMU63A2l8kI_3RoOkYLM8ci0BEmTalkNV1pGpfS_B4EYfDjgRNnYB_NevtZx0bjPbQxr6ZoVR/s400/dom-casmurro.jpeg)
Em sua longa vida literária, desenvolvida quase toda no século XIX, Machado soube construir não só o texto de seu tempo, mas, também, o texto do futuro, mostrando a realidade do Segundo Império, mas transcendendo-a para a realidade do homem de qualquer tempo – do tempo de hoje, do nosso tempo...
Prefácio de Ângela Gutiérrez para Dom Casmurro, pela ABC Editora.