sábado, 9 de maio de 2009

Vida & Obra de Graciliano Ramos

Oswald de Andrade dizia que Graciliano Ramos era um “mandacaru escrevendo”. A definição é muito pertinente. A planta do sertão floresce justamente na seca, dando, entre os seus muitos espinhos, uma imprevista flor branca, de textura delicada. Assim era Graciliano Ramos, assim era sua escritura.

Livros como Vidas Secas – que em 2008 comemorou 70 anos desde sua primeira edição – foram traduzidos para o francês, inglês, italiano, russo, tcheco, polonês, alemão, espanhol, húngaro, búlgaro, romeno, finlandês e holandês. Assim, a obra de Graciliano alcançou prestígio internacional, quer pela profundidade psicológica que conferiu a seus personagens, quer pela problemática sociopolítica abordada pelo autor.

Estreou com Caetés, romance ambientado em Palmeira dos Índios, estado de Alagoas. O narrador-protagonista, João Valério, apaixona-se por Luísa, esposa de seu chefe, Adrião. O envolvimento de ambos torna-se público e é delatado por uma carta anônima, levando o marido traído a suicidar-se. Atormentado pela culpa, João Valério afasta-se de Luísa, mas se mantém à frente da firma, antes pertencente ao falecido.



Apesar de não ser ainda um exemplo acabado do gênio de Graciliano, a obra já é bastante consistente, e anuncia o grande autor que se confirmará nos três romances seguintes: São Bernardo (1934), Angústia (1935) e Vidas Secas (1938) – este último tido como a obra-prima do ciclo do regionalismo nordestino.

Seus protagonistas padecem de uma inadaptação à existência e ao meio, frequentemente motivada pelo temperamento esquivo e pelo choque com as figuras de autoridade. Paulo Honório, em São Bernardo, é menino abandonado que desde cedo se vê às voltas com o próprio sustento. Maltratado e explorado durante toda a infância, o personagem de constituição psicológica frágil reveste-se de uma armadura de brutalidade para defender-se do mundo. Amealha fortuna por meios escrupulosos, adquire a fazenda São Bernardo, onde trabalhara quando menino, e passa a exercer seu poder de patrão a patadas [...]


Angústia, um dos mais impressionantes romances do autor, retrata Luís da Silva, funcionário da Diretoria do Tesouro, em Maceió, que vive modestamente com um parco salário. Odeia os donos do poder, os medíocres que vivem e moram melhor do que ele. Seu único sopro de alento é Marina, filha dos vizinhos, moça bonita com quem, à custa de grandes sacrifícios econômicos, fica noivo. A moça, porém, resolve ceder ao assédio e aos presentes de Julião Tavares, tipo seboso, gorducho, engomadinho e rico, por quem Luís da Silva tinha especial antipatia e desprezo. Cônscio de que vai perdê-la para o rival, Luís coloca-se a uma distância prudente, movido pelo despeito e pelo orgulho. A presença de Julião na casa vizinha, entretanto, começa a rarear, e o protagonista ouve involuntariamente uma conversa de Marina com sua mãe, dona Amélia: ela estava grávida e fora abandonada [...]


Já Fabiano, protagonista de Vidas Secas, é um personagem que “não sabe gritar”. Sua condição física, moral e social não lhe permite. Juntamente com a mulher, sinhá Vitória, e os dois filhos, o menino mais velho e o menino mais novo, cruza o sertão para fugir à seca. São criaturas reduzidas ao mais extremo estado de miséria: vestem-se com trapos rotos, não têm pousada, trabalho, comida, saúde, horizontes. Apenas uma esperança insistente de chegar a algum lugar, já que estão perdidos no nada [...]


Uma sensibilidade exacerbada cozida desde cedo em brutalidades. Tal foi a sina precoce de Graciliano Ramos (1892-1953). Primogênito dos 16 filhos que teria o casal Ramos, a mãe com 14 anos, o pai com 32, o menino aprendeu cedo que a vida era áspera e que não haveria espaço para delicadezas. Foi criado embaixo de pancadas. A mãe-menina e o pai não tinham ternuras, nem davam referências claras do que os agradava ou desagradava, de forma que o mesmo feito podia gerar indiferença ou chibatadas. Cresceu miúdo e acuado entre as cidades de Quebrangulo, Viçosa, Palmeira dos Índios (AL) e Buíque (PE). Aos 3 anos já via passar os imigrantes fugidos da seca, e aqueles espantalhos da fome marcaram profundamente sua memória. Aos 8, já tomava conta da casa comercial do pai. Foi sobre o balcão da loja que começou a rabiscar em folhas de embrulho seus primeiros escritos, versos que mais tarde ele disse terem sido “roídos pelas traças”, anônimos. Quatro anos depois, na cidade de Viçosa, criou um jornalzinho infantil, o Dilúculo, e, logo depois, o Echo Viçosense [...]

Exatamente no dia de seu 18º aniversário, decretou realmente sua maioridade, voltando à Palmeira dos Índios, onde passou a residir. Em 1914, foi para o Rio de Janeiro onde atuou como jornalista e comerciante. No ano seguinte, considerou retornar às pressas para Alagoas, movido por motivo trágico: a morte de seus irmãos Leonor e Clodoaldo, da irmã Otacília e do sobrinho Heleno, todos no mesmo dia, vítimas da peste bubônica. Ainda no estado natal, casou-se com Maria Augusta de Barros, estabelecendo-se em Palmeira dos Índios por longo período. Depois de cinco anos de casamento, perdeu a esposa no parto do quarto filho, uma menina que foi batizada com o mesmo nome da mãe. Ficara viúvo oito anos, criando os filhos pequenos, até casar-se novamente com Heloísa Leite de Medeiros, que lhe deu mais quatro filhos, um deles morto com poucos meses.

Em 1927, foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios, tomando posse em janeiro do ano seguinte. E foi justamente ao publicar pela Imprensa Oficial de Alagoas um relatório dirigido ao governador Álvaro Paes que ele classificou como “um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928”, que sua carreira literária se descortinou. Tal relatório chegou às mãos do poeta e editor Augusto Frederico Schmidt, que prontamente detectou o talento literário do escritor, e o procurou para saber se Graciliano tinha escritos inéditos e se estaria interessado em publicá-los. Mas o velho Graça ainda faria breve carreira como político antes de deixar que a literatura fosse o eixo de sua vida profissional. Os dois anos que esteve no comando da cidade foram turbulentos. O coronelismo arraigado à política local não lhe deu tréguas, mas também não lhe abalou a integridade [...]


Depois de dois anos de luta desigual, em que foi, inclusive, ameaçado de morte, Graciliano renunciou ao cargo. Ou renunciava, ou cedia, coisa que nunca esteve disposto a fazer. Os ecos dessa honestidade teimosa, anos depois, iriam lhe custar uma prisão sem acusação formal e sem processo. Mudou-se com a família para Maceió, onde permaneceram seis anos, exercendo várias funções profissionais, chegando a secretário estadual de educação, sempre atuando como colaborador de diversos periódicos. Em 1933, publicou seu romance de estreia, Caetés, e, no ano seguinte, São Bernardo. Mas em janeiro de 1936, algo o aguardava: foi demitido e preso sob acusação de ter conspirado durante a Intentona Comunista, sendo encaminhado de navio para o Rio de Janeiro. Seguiu-se a provação terrível de dez meses de cárcere, em condições subumanas. Durante sua prisão, o editor José Olympio, seu amigo pessoal, desafiou o Estado e publicou Angústia, terceiro romance de Graciliano Ramos, que recebeu o Prêmio Lima Barreto, oferecido pela Revista Acadêmica.

Num quarto de prisão da rua do Catete, onde se alojou com a esposa e os filhos, começou a pensar em um novo romance. Mas aflições financeiras exigiam dinheiro imediato. Lembrou-se do caso de um cão sacrificado e escreveu um conto, Baleia, que foi vendido a um jornal brasileiro e outro argentino. A despretensão e a urgência que o levaram a escrever o texto lhe renderem, entretanto, um sucesso, e outro lhe foi encomendado. Ele escreveu Fabiano. Assim, sob a forma de contos, foram nascendo os capítulos de Vidas Secas. Logo tinha um romance, e tais “contos” foram sendo encaixados na obra como um todo. Seu maior sucesso, o livro é considerado a obra-prima do ciclo do regionalismo nordestino da literatura brasileira.

Seguiu trabalhando, primeiro como copidesque e colaborador para vários jornais e revistas, até ser nomeado inspetor federal de Ensino Secundário do Rio de Janeiro, em 1939. Outras publicações ocorreram e diversos prêmios lhe foram concedidos. Na década de 1940, tornou-se frequentador assíduo da roda de intelectuais que se encontravam na sede da revista Diretrizes. Entre eles, José Lins do Rêgo, Álvaro Moreira, Joel Silveira e outros “conhecidos comunistas e elementos de esquerda”, como se lê na sua ficha policial. Em 1945, filiou-se ao Partido Comunista, num dos lapsos da história do século XX, em que ele esteve legalizado no Brasil. Luís Carlos Prestes, então secretário-geral do partido, lhe fez o convite pessoalmente. No mesmo ano, publicou seu livro de memórias, Infância.


Em 1952, viajou pela União Soviética, Checoslováquia, França e Portugal durante dois meses. Quis conhecer de perto os rumos do comunismo e não gostou do que viu. Já por esse tempo, um câncer de pulmão lhe roia o corpo esguio. Amigos comemoraram seus 60 anos, sem sua presença, no Salão Nobre da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em sessão presidida pelo acadêmico Peregrino Júnior. A 20 de março do ano seguinte, perdeu a batalha para o câncer.

(OLIVEIRA, Clenir Bellezi de. A flor do mandacaru. Discutindo literatura, São Paulo, ano 3, n. 18, p. 34-42, 2008.)



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