quinta-feira, 2 de julho de 2009

Lucíola

Lucíola, que faz parte da galeria dos romances alencarinos que esboçam perfis femininos, inicia-se por um pequeno texto intitulado “Ao autor”. Nele, sob o pseudônimo de G.M., o romancista explica a gênese do livro e sua constituição narrativa, privilegiando aspectos como a ambivalência verdade/ficção, a trajetória trágica de uma figura feminina e a questão da moral nos textos literários. Esta pequena introdução, de apenas uma página, tem importância crucial para a compreensão da obra, já que oferece dicas valorosas sobre o tema, a protagonista e o processo de elaboração ficcional.

Na primeira metade do livro, Lúcia desponta na exuberância da sua beleza que, em um primeiro momento, evoca sentimentos pueris, quase inocentes; no entanto, sua sensualidade latejante não custa a se manifestar. Quando é assim manifestada, na luxúria e concupiscência, Lúcia vê-se comparada a animais, quase sempre bichos encantatórios e vorazes, prestes a dar o bote inebriante e venenoso em suas vítimas. Sua presença voluptuosa era capaz de despertar desejos ignominiosos e incontroláveis. Essa faceta pervertida e bacante da personagem rende cenas vivazes e picantes, com descrições detalhadas de cenas sexuais, com certeza audaciosas para o espírito conservador da época.

Lúcia, entretanto, tem uma outra forma de distinção, que supera o erotismo das cenas mais ardentes: a inteligência e a argúcia, características consideradas, então, predominantemente masculinas. Através dos sarcasmos e das ironias afiadas e desconcertantes, ela destoa da linguagem doméstica apropriada às mulheres e invade um território marcado pela supremacia dos homens.

Além da verve da palavra, sua autonomia e seu senso de independência contrastavam com os modelos bem comportados do século XIX. Uma mulher sem senhor, rica e que determinava as escolhas amorosas, era muito para uma época que enaltecia a submissão feminina e fincava lugares e posturas pouco maleáveis dentro da conduta moral. Assim, não é somente a sua condição de prostituta que escandaliza a corte, mas, sobretudo, o desapego às convenções sociais e o desprezo às hipocrisias.


Seu reinado, todavia, começa a desmoronar quando permite a paixão por Paulo. A devoção a Dionísio, deus do êxtase e do entusiasmo, da liberdade e da insubmissão, é substituída pelo amor incondicional e humano, que revitaliza os apelos cristãos e morais e opera uma transformação gradual na cortesã. Da bacante que protagoniza festas orgiásticas, como a que acontece na casa de Sá, amigo de Paulo, Lúcia transfigura-se em cordeiro, despede-se da ironia e do sarcasmo e abdica da atração que poderia exercer sobre os homens. À medida que seu amor cresce, a mulher fatal, serpente pecadora, passa a vítima expiatória. Desfaz-se de móveis, joias e roupas, num processo de desnudamento sacrificial. Não é mais a cortesã que se despe para os homens, é a Madalena arrependida que abre mão das posses que indicam qualquer ligação com o seu passado pecador e pregresso.



O passo seguinte no processo de purificação que inflige a si mesma é abandonar a corte e morar com a irmã mais nova, Ana, num lugar retirado. Reclusa, procura uma vida doméstica apropriada a uma mulher honesta. Lúcia, agora Maria da Glória, Maria, como gosta de ser chamada por Paulo, numa clara alusão à castidade da Maria bíblica, não pode, entretanto, purificar-se por inteiro, pois seu passado funciona como mancha que água alguma pode limpar. A morte, enfim, é a única saída para aquela que, pela beleza e independência, reinou num mundo de homens e regras.


O final de Lúcia, romântico por excelência, indica a redenção e a dignidade como os únicos caminhos possíveis para a felicidade. As opções apontadas incluem-se, com certeza, entre os postulados estéticos do Romantismo, que propugnam uma visão idealizada da mulher e uma certa nostalgia em relação aos códigos de conduta humana. No caso específico de Lucíola, o perfil da mulher é a do anjo decaído, vítima das armadilhas insidiosas de mentes pervertidas, que encontra no sofrimento e na morte a cura dos vícios.



Alencar, o grande ficcionista do romantismo brasileiro, montou um painel crítico da sociedade de então, movida por vilezas e ambições. Cortesã não é somente Lúcia, é o próprio tipo de relação que se estabelecia entre as pessoas. Nos seus romances ditos citadinos, essa foi, certamente, a faceta mais explorada: o amor ameaçado pela luxúria e pela ambição.




por Sarah Diva da Silva Ipiranga (2002)

Mestra em Literatura Brasileira pela UFMG; Professora de Literatura Brasileira da UFC.





Nenhum comentário: