Além da verve da palavra, sua autonomia e seu senso de independência contrastavam com os modelos bem comportados do século XIX. Uma mulher sem senhor, rica e que determinava as escolhas amorosas, era muito para uma época que enaltecia a submissão feminina e fincava lugares e posturas pouco maleáveis dentro da conduta moral. Assim, não é somente a sua condição de prostituta que escandaliza a corte, mas, sobretudo, o desapego às convenções sociais e o desprezo às hipocrisias.
Seu reinado, todavia, começa a desmoronar quando permite a paixão por Paulo. A devoção a Dionísio, deus do êxtase e do entusiasmo, da liberdade e da insubmissão, é substituída pelo amor incondicional e humano, que revitaliza os apelos cristãos e morais e opera uma transformação gradual na cortesã. Da bacante que protagoniza festas orgiásticas, como a que acontece na casa de Sá, amigo de Paulo, Lúcia transfigura-se em cordeiro, despede-se da ironia e do sarcasmo e abdica da atração que poderia exercer sobre os homens. À medida que seu amor cresce, a mulher fatal, serpente pecadora, passa a vítima expiatória. Desfaz-se de móveis, joias e roupas, num processo de desnudamento sacrificial. Não é mais a cortesã que se despe para os homens, é a Madalena arrependida que abre mão das posses que indicam qualquer ligação com o seu passado pecador e pregresso.
O passo seguinte no processo de purificação que inflige a si mesma é abandonar a corte e morar com a irmã mais nova, Ana, num lugar retirado. Reclusa, procura uma vida doméstica apropriada a uma mulher honesta. Lúcia, agora Maria da Glória, Maria, como gosta de ser chamada por Paulo, numa clara alusão à castidade da Maria bíblica, não pode, entretanto, purificar-se por inteiro, pois seu passado funciona como mancha que água alguma pode limpar. A morte, enfim, é a única saída para aquela que, pela beleza e independência, reinou num mundo de homens e regras.
O final de Lúcia, romântico por excelência, indica a redenção e a dignidade como os únicos caminhos possíveis para a felicidade. As opções apontadas incluem-se, com certeza, entre os postulados estéticos do Romantismo, que propugnam uma visão idealizada da mulher e uma certa nostalgia em relação aos códigos de conduta humana. No caso específico de Lucíola, o perfil da mulher é a do anjo decaído, vítima das armadilhas insidiosas de mentes pervertidas, que encontra no sofrimento e na morte a cura dos vícios.
Alencar, o grande ficcionista do romantismo brasileiro, montou um painel crítico da sociedade de então, movida por vilezas e ambições. Cortesã não é somente Lúcia, é o próprio tipo de relação que se estabelecia entre as pessoas. Nos seus romances ditos citadinos, essa foi, certamente, a faceta mais explorada: o amor ameaçado pela luxúria e pela ambição.
por Sarah Diva da Silva Ipiranga (2002)
Mestra em Literatura Brasileira pela UFMG; Professora de Literatura Brasileira da UFC.
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