sábado, 26 de setembro de 2009

Análise de Dom Casmurro

O leitor de Machado imaginará que não é fácil escrever sobre o mais consagrado de nossos escritores: sua obra abrange mais de cinquenta anos de sua vida e se estende por vários gêneros como o conto, a crônica, a poesia, o teatro, a crítica, o romance e tem sido alvo de numerosa fortuna crítica, ao longo de mais de cem anos. Entre suas obras, Dom Casmurro, vem concentrando o interesse maior dos leitores e da crítica.

Neste romance, Dom Casmurro, nome com que fica conhecido na idade madura o advogado Bento Santiago, tenta “atar as duas pontas da vida” através da memória, relembrando seu amor, desde menino por Capitu, a luta bem-sucedida para impedir o cumprimento da promessa de sua mãe em fazê-lo padre, sua vida conjugal com Capitu, o nascimento do filho e, com a morte do amigo Escobar, o nascimento das dúvidas... Embora durante muito tempo, a crítica tenha lido Dom Casmurro como o romance do adultério, permitimo-nos lê-lo, através de indícios disseminados no próprio discurso encapuzado do narrador, como o romance do ciúme. Mais do que a história do possível adultério de Capitu, o livro conta o drama de Bentinho, obsessivamente centrado nas sensações do ciúme, tal como Otelo de Shakespeare, tantas vezes mencionado pelo personagem-narrador.

Como seus outros romances, Dom Casmurro tem por cenário a cidade do Rio. As referências a personagens, acontecimentos e costumes que caracterizam o Rio do Segundo Império são abundantes: o pregão do vendedor de cocadas, as relações familiares de feitio patriarcal, o Imperador a caminho da Escola de Medicina no coche imperial, os panegíricos, as francesas da Rua do Ouvidor, a Tijuca e a Glória, o namoro a cavalo, o canapé, os comentários à guerra da Crimeia, a contradança, o gabinete do Rio Branco, o discurso no enterro.

Machado revela, porém, uma cidade e um tempo filtrados por seu pessimismo mitigado e relativizados pelo humor e pela ironia. Em sua vida sedentária, as viagens de verdade foram substituídas pelas viagens à cidade das letras ou, como ele mesmo disse, em voz de Brás Cubas, pela viagem “à roda da vida”.

A retórica do personagem-narrador de Dom Casmurro é construída com vários artifícios: do discurso forense, às digressões, à metáfora, às alusões bíblicas, à ironia, ele vai tecendo sedutora e persuasiva teia de aprisionamento do leitor. A estrutura do discurso de Casmurro, com raciocínio de advogado, quer convencer através do argumento da verossimilhança: não podendo provar que Capitu cometeu adultério trata de mostrar que é verossímil a hipótese de que o tenha cometido. As digressões disseminadas nas suas “memórias” – a alegoria da ópera, a visita do Imperador, o Panegírico de Santa Mônica, Otelo –, trazem, também uma “lição” que complementa, reafirma ou metamorforiza a ideia central do narrador: a contradição e a fragilidade do ser humano, sua tendência para o mal. Outro modo de operar do discurso de Dom Casmurro é o do uso de metáforas tão marcantes que uma delas cristalizou-se no imaginário brasileiro, a expressão “olhos de ressaca”, para Capitu, com a mesma força da expressão “virgem dos lábios de mel”, para Iracema, de José de Alencar.

A contradição da elite brasileira do final do século, que se acreditava civilizada e civilizadora, vivendo a belle époque dos trópicos, mas que foi responsável pelo brutal massacre de Canudos, retrata-se genialmente nesse Casmurro culto, inteligente e de bom-gosto, conhecedor da melhor literatura europeia, mas capaz do ato bárbaro de condenar sua mulher sem direito à defesa, e de castigá-la com o desterro. Ao saber da morte do jovem Ezequiel, lembremos a suprema ironia de Machado, Dom Casmurro jantou bem e foi ao teatro.

Em sua longa vida literária, desenvolvida quase toda no século XIX, Machado soube construir não só o texto de seu tempo, mas, também, o texto do futuro, mostrando a realidade do Segundo Império, mas transcendendo-a para a realidade do homem de qualquer tempo – do tempo de hoje, do nosso tempo...


Prefácio de Ângela Gutiérrez para Dom Casmurro, pela ABC Editora.

Um comentário:

Maria Valentina disse...

Uma obra literaria maravilhosa!!