segunda-feira, 28 de setembro de 2009

As Intertextualidades Bíblicas em Memórias Póstumas de Brás Cubas

A ferramenta da intertextualidade se faz presente quando, na produção de um texto, recorremos a outros textos que devem fazer parte da memória social dos interlocutores para que haja a construção de sentido das estruturas textuais. Conforme Umberto Eco, “o leitor, por assim dizer, sai do texto, vai explorar o universo da intertextualidade e da sua competência enciclopédica, retorna ao texto com uma carga de informações e começa a fazer inferências.” [...]


As intertextualidades bíblicas presentes em Memórias Póstumas de Brás Cubas não são utilizadas com propósito religioso, nem tampouco para defender as doutrinas da Igreja. Machado utiliza a Bíblia como uma fonte de sabedoria, sem finalidade moralista, como bem afirma Marta de Senna: “Machado cita a Bíblia (mais o Antigo do que o Novo Testamento) como a um livro de sabedoria, como a um repositório da cultura e da tradição judaico-cristãs.”


Convém notar que, por muitas vezes, o narrador de Memórias Póstumas subverte as Escrituras, a fim de defender um pensamento filosófico ou um propósito de caráter humano. Sobre isto, Marta de Senna avalia: “Penso que uma das riquezas da literatura de Machado de Assis é, precisamente, essa subversão, às vezes explícita, às vezes subliminar, de crenças, ideologias, teorias, filosofias...”


Logo no início do capítulo I, podemos constatar uma intertextualidade bíblica na qual o próprio narrador se distingue de Moisés, como revela o seguinte trecho: “Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco (p. 17).” [...]


No capítulo VII, Brás Cubas consegue estabelecer um pequeno diálogo com o hipopótamo que o levava à origem dos séculos. Ao chegarem a uma planície de neve, Brás faz um pedido ao animal: “Bem; paremos na tenda de Abraão (p. 26).”


Segundo consta nas Escrituras, a tenda de Abraão tinha várias funções, dentre elas, oferecer conselhos às pessoas que a procuravam. A partir desse trecho, deduzimos que, pelo fato de Brás Cubas ter vivido de maneira desregrada, pessimista e entediada, ele deseja parar na tenda de Abraão a fim de receber conselhos e orientações.


Prosseguindo no mesmo capítulo, Brás Cubas contempla a redução dos séculos do alto de uma montanha e achando que valia a pena, disse: “Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo (p. 28).”


Esse trecho cita o personagem bíblico Jó, o qual foi acometido por uma chaga que o atingiu da ponta do cabelo à ponta do pé, além disso, perdeu dez filhos e toda a sua riqueza. Devido a tais acontecimentos, Jó teve um delírio de sua fé, questionou a Deus os motivos de seu sofrimento e amaldiçoou o dia em que nasceu. Brás Cubas, sarcasticamente, refere-se à maldição desse dia não pelo motivo dos acontecimentos trágicos na vida de Jó, mas porque ele imaginava que este tinha desejos de ver a vida com suas glórias e mazelas, lá do alto da montanha, assim como ele teve o privilégio de apreciar esse “espetáculo.”


E, ainda no mesmo capítulo, Brás Cubas é obrigado pela Natureza a olhar para baixo, com a finalidade expressa na seguinte passagem: “(...) ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura (p. 28).”


O narrador, nessa passagem, assemelha as gerações tristes que existem no decorrer dos séculos aos Hebreus do cativeiro. Estes, de acordo com as Escrituras, eram pessoas tristes, sofridas, humilhadas, que viviam presas no cativeiro da Babilônia, onde passaram 430 anos, trabalhando duramente como escravos, vigiados por soldados que os oprimiam, a ponto de muitos chegarem à morte [...]


No capítulo CXXXI, há uma breve alusão aos Santos Evangelhos: “Em pontos de aventura amorosa, achei homens que sorriam; ou negavam a custo, de um modo frio, monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não davam por si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia (p. 155).”


Nesse trecho, Brás Cubas faz uma reflexão acerca da traição amorosa, que tanto homens como mulheres a praticam. Segundo ele, o homem nega a traição de um modo frio e monossilábico, enquanto que a mulher jura aos Santos Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) que tudo não passa de uma calúnia. Portanto, conforme o ponto de vista do narrador, a figura feminina se vale dos Livros Sagrados para negar o que realmente faz. Através dessa reflexão, percebemos uma crítica do narrador em relação às mulheres que traem, uma vez que considera um absurdo tal juramento, e ainda percebemos uma referência ao aspecto marcante nas personagens femininas de Machado: a dissimulação [...]





REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 11. ed. São Paulo: Ática, 1985. (Série Bom Livro).

ECO, Umberto. O conceito de texto. In: KESKE, Ivan Humberto. Sessões do imaginário: cinema, cibercultura, tecnologias da imagem, cinema e imaginário. São Paulo: EDUSP, 1984.

SENNA, Marta de. A Bíblia de Mrs. Oswald ou cochilos do Bruxo. Disponível em: . Acesso em: 16 maio 2009.



Por Cleitiane Serpa. Graduanda em Letras pela Universidade Federal do Ceará.

Um comentário:

Anônimo disse...
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